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Entrevista A

A morte de um garantista

07 julho 2018 - 12h12Da redação

Na última terça-feira (3), Mato Grosso do Sul perdeu o desembargador Romero Osme Dias Lopes, vítima de câncer. O fato, não é apenas o falecimento de um magistrado que será substituído por outro, mas uma dura baixa em uma linha de pensamento que perde espaço nos dias de hoje, a do magistrado que não é pautado pela opinião pública ou pela pressão do Ministério Público (MP), mas que julga pelo que esta nos autos e olhando primeiro para as garantias do cidadão.

Romero era um garantista convicto, em centenas de processos, teve embates com promotores e procuradores, e defendia abertamente a "teoria da bagatela imprópria", que não prende alguém que roubou um pacote de macarrão, por exemplo. A melhor tradução do pensamento legalista de Romero, porém, está em uma entrevista, dada por ele ao Jornal de Domingo, em 2007, e que reproduzimos aqui. Quem lê-la pode achar que foi concedida bem mais recentemente, mas já se passaram 11 anos. Tão longe, tão perto. Vale a leitura.

“A justiça não é isso, não penso como o povo”

Jornal de Domingo - Já se nota uma divisão entre setores com mais conhecimento sobre a área jurídica, que acham exagerados os métodos da Polícia Federal (PF) e Ministério Público Federal (MPF), e a rua amplamente favorável, ao uso de algemas e operações cinematográficas. Como o senhor vê a questão polêmica?

Romero Lopes - Exatamente da maneira que o jornalista propôs a pergunta: como um dos integrantes do setor com certo conhecimento jurídico. E assim, absolutamente contra os exageros praticados em um momento da prisão ou de cumprimento de um mandado de busca e apreensão de documentos. É degradante a forma como são conduzidas certas operações, tanto pelo uso ostensivo de armas de grosso calibre (fuzis, metralhadoras) como pela exposição das pessoas à mídia. São cenas constrangedoras para quem as sofre e provocam danos irreversíveis. É uma forma de condenação imediata praticamente “sem recurso”. E não é este o fundamento da diligência, que é o da colheita da prova fere a dignidade humana das pessoas e alimenta a sanha daqueles que aplaudem uma espécie de circo romano moderno para a plateia, que você chama de “rua”, isto é, o povo. E aqui não custa lembrar que a opinião pública dos moradores de Araguari, Minas Gerais, no tristemente célebre caso dos irmãos Naves estava contra os “acusados”, o que praticamente forçou a polícia agir com um rigor criminoso na apuração de um crime que não houve. A opinião pública é um cheque sem fundos, na área da ciência do Direito.                       

Jornal de Domingo - A flexibilização do uso de provas ilícitas é avanço ou retrocesso?

Romero Lopes - Não só um retrocesso jurídico, mas de uma inconstitucionalidade gritante. Já tive a oportunidade de dizer que a Constituição não excepciona. É ilícita, é imprestável. A polícia é paga para usar de métodos lícitos na busca das provas. Senão, seria o caos. As relações de amizade, confiança, cordialidade, humor todas seriam afetadas se fossem permitidas invasões a privacidades através de interceptações telefônicas não autorizadas pela Justiça; escutas ambientais, “incursões noturnas em escritórios”, como salientou a revista Veja em uma de suas últimas edições, etc. Ah, a propósito: é comum a imprensa noticiar que “apesar de sigilosas as investigações, tivemos acessos às gravações, às provas, etc.”. Eu pergunto: quem transmitiu essas informações? Isso é crime e o Ministério Público teria que apurar. Todo agente público que divulga informação em razão do ofício deveria ser investigado. Porque isto representa uma condenação antecipada, irreversível. Vejam os exemplos dos diretores da Escola de Base em São Paulo, o caso do ex-ministro Alceni Guerra e tantos outros, que foram execrados e posteriormente nada foi apurado contra. Esta situação toda é um retrocesso até mesmo social e tende a aumentar com a permissão de provas “derivadas das ilícitas”. A justiça não é isto. Não penso como “povo” quando interpreto assim, mas entendo que até como integrante de uma sociedade livre e membro de um estado moderno e democrático de direito tenho obrigação de assim pensar.      

Jornal de Domingo - Como o desembargador vê a atuação da justiça em Mato Grosso do Sul?   

Romero Lopes - Tenho-a como uma das melhores do país, o que não significa que ela seja ótima. Nenhuma atingiria esta qualificação. Todas estão falhando, umas menos e outras mais. Mas, a nossa está informatizada, atinge um nível de criação e instalação de comarcas, as mais distantes e pequeninas como nenhuma outra. A rigor todas as varas estão providas e avizinha-se mais um concurso para juízes substitutos. Contudo, a questão que se apresenta relevante na pergunta é quanto à morosidade. Aí, estamos quase que no mesmo nível das demais, pois o número de demandas aumentou de uma maneira absurda. A média de 600 novos processos por mês nas varas cíveis da capital (em cada uma) dá uma pequena ideia do problema. A procura pela solução dos conflitos no Judiciário aumentou muito.  

Jornal de Domingo - E como o senhor vê o Poder Judiciário como um todo? 

Romero Lopes - No mínimo, a sua imprescindibilidade tendo como sustentáculo a obrigação moral e jurídica de proteger o cidadão. Aliás, isto é até mesmo uma obrigação do Estado, incluído o Ministério Público, quando investido das funções de defensor dos interesses sociais e individuais indisponíveis, consoante preceito constitucional. A esta instituição (o MP) compete, inclusive exercer o controle externo da atividade policial e é por esta razão que disse anteriormente que seus membros deveriam requisitar diligências investigatórias com relação aos vazamentos de informações sigilosas para a imprensa por atos de agentes públicos, mesmo que seja na própria carne.  

Jornal de Domingo - O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF) tem um estudo que mostra que são ineptas 45% das denúncias que chegam do MPF. Estamos entrando numa era de muito espetáculo e de pouca justiça?

Romero Lopes - Eu realmente li esta reportagem na Carta Capital. Não tenho elementos para confirmar ou discordar. Mas, aliado às minhas respostas nesta entrevista a sua pergunta é uma afirmação. Estamos sim. E precisamos sair dela o mais urgente possível, para resgatarmos nossa dignidade, quer como cidadão quer como instituição.  

Jornal de Domingo - Como se acaba com a impunidade, que é um clamor popular justo?    

Romero Lopes - Justíssimo, eu diria. Acaba-se a impunidade com inquéritos bem feitos, sem uso de prova ilícita que apenas agrada a mídia e provoca comoção na população; com denúncias alicerçadas em evidências plausíveis, em ações criminais realizadas com ampla defesa e o devido processo legal. Finalmente, com obediência aos mandamentos constitucionais que protegem os cidadãos dos arcanos do poder. Esta promiscuidade que se estabeleceu entre a mídia e as garantias fundamentais dos cidadãos dão incerteza quanto aos limites do que é legal e do que não é.

Jornal de Domingo - Também das ruas, a justiça solta com muita facilidade? 

Romero Lopes - Eu diria que é exatamente o contrário. Às vezes tenho notado que a mídia exerce uma influência muito grande e a forma raivosa com que ela dá uma notícia pode predispor o magistrado a ser mais duro do que a realidade. Os presídios estão superlotados e todos esses mandados dos quais estamos falando foram autorizados pela justiça. Agora, hoje em dia não é só a liberdade que é o bem mais precioso do indivíduo, que está em pauta de discussão.  Pior do que perdê-la é ser mandado para uma cadeia que não somente priva o cidadão de sua existência, mas retira também o seu caráter, sua dignidade e sua honra, transformando um ser humano em um animal. Não digo que cadeia não seja para todos, pois muitos até mesmo a merecem. Mas, daí a acreditar que ela corrige, que ela conserta, é um erro tão medonho quanto mandar alguém que não mereça estar lá.   

Jornal de Domingo - Como será sua atuação no Tribunal de Justiça?  

Romero Lopes - Não sei, pois somente o tempo dirá, farei o melhor que puder.

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