“Bati mesmo, mas foi revide”. “Olha o que ela me fez passar”. “Pode até ter acontecido um ato de violência, mas tinha um contexto para isso”. “Eu fui humilhado”. Esses são alguns dos sentimentos expressados por homens autuados pela Lei Maria da Penha em São Paulo. É assim que eles chegam, encaminhados pela Justiça, ao grupo reflexivo para homens, que funciona em parceria com a organização não governamental (ONG) Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.
Espaços como este estão previstos na lei e diminuem de forma expressiva a reincidência, mas ainda dependem de ações voluntárias. “Eles chegam bem inconformados numa perspectiva de vitimização. Falam mal das mulheres, mal da lei, xingam. Falam muitos conteúdos machistas e violentos. Depois com o tempo vão percebendo: ‘Opa, não é só comigo que aconteceu isso. Com outros aqui do grupo também’”, afirmou o psicólogo Tales Furtado Mistura, coordenador do grupo.
O psicólogo destaca que o trabalho se pauta pela identificação e por repensar a socialização masculina. “O principal é desconstruir alguns estereótipos de gênero e, principalmente, rever alternativas não violentas para os conflitos e ter outras referências de masculinidade”, explicou.
Segundo Tales Mistura, um levantamento amostral da Vara Central de Violência Doméstica, na Barra Funda, releva que a taxa de reincidência caiu de 75% para 6% entre os homens que passam pelo trabalho de reflexão.
Ao todo, são 16 encontros de duas horas cada, às segundas-feiras, com um máximo de 15 integrantes.
Neste grupo, a adesão é voluntária e a participação pode vir a ser um atenuante na pena, caso ele venha a ser condenado. O encaminhamento ocorre ainda na fase pré-processual. Em uma “mega-audiência”, a juíza apresenta a proposta e os homens aderem, ou não, ao grupo. A iniciativa completa 10 anos e foi proposta ao Judiciário pelo coletivo feminista.
Projeto
Atualmente, o Judiciário paulista conta com três iniciativas similares a esta, uma na Comarca de Santo André e outra na Vara de Violência Doméstica da Região Oeste, na capital paulista. “E agora, José?” é o nome do projeto desenvolvido em Santo André, na Grande São Paulo. Desde 2014, quando teve início a ação, 300 homens foram encaminhados para o grupo coordenado pelo psicólogo Flávio Urra.
Diferentemente da iniciativa do coletivo feminista, a participação neste grupo pode suspender a sentença. “Como condição para que a suspensão permaneça e aconteça, eu imponho a obrigação de que ele compareça ao curso, que é um grupo reflexivo para a questão da masculinidade e para outro tipo de posicionamento. Tentar mudar essa cultura através da educação e dessa formação. Aqui ele é obrigatório”, disse a juíza Teresa Cristina Cabral Santana, da 2ª Vara Criminal da Comarca de Santo André.
Em cinco anos, apenas dois homens reincidiram e um foi retirado do curso por inadequação. A juíza destaca que todos os casos enquadrados na Lei Maria da Penha podem ser encaminhados para o grupo, mas que todos eles passam por, pelo menos, duas avaliações por profissionais da área da psicologia. Cada homem deve participar de 20 sessões.
“Uma vez completadas, os profissionais encaminham um relatório dizendo como foi a participação, se foi profícua, se não foi, se o resultado foi alcançado ou não. A partir daí, a gente faz outra avaliação ou encaminhamento se necessário for”, afirmou. Em geral, a participação no curso ocorre em casos de violência ou grave ameaça, que, segundo Teresa Cristina, são a maioria dos casos.
Perfil
Nos dois grupos, o perfil dos homens participantes é bem diverso. “É uma mostra extremamente fidedigna dos homens brasileiros. De 18 a 70 anos, ricos, semianalfabetos. O que distingue os homens de dentro do grupo para os de fora é um boletim de ocorrência, as referências são as mesmas”, disse Tales Mistura.
O mesmo ocorre em Santo André. “Não tem um perfil pré-determinado, porque é uma questão cultural. Aqui como é cidade, que abrange todos os bairros, praticamente de todas as classes sociais, com distintas características”, afirmou a juíza.
O coordenador destaca que os debates feitos no grupo são novidades para praticamente todos os participantes. “Nunca pararam em nenhum momento da vida para pensar sobre suas próprias atitudes, sobre suas próprias vidas. Lá é um momento para isso”, disse.
Entre os assuntos discutidos, estão, por exemplo, os modelos de masculinidade. “São referências que induzem muito ao machismo e à violência. Ou ele é o fraco ou o forte. Ou ele é o garanhão ou é gay. A gente pensa alternativas”, explicou.
Parcerias
A juíza da Comarca de Santo André lamenta que essas iniciativas dependam de ações voluntárias e pontuais, e não como políticas públicas. “Trabalhar com esses grupos reflexivos é importante como uma forma de atuação, não só na responsabilização, porque ela tem que acontecer, mas como forma de prevenção também”, defendeu.
Segundo ela, esses homens continuarão a se relacionar na sociedade com outras mulheres, não necessariamente com a que gerou o processo e a condenação, mas, se não há um comprometimento com a mudança, esse tipo de comportamento persistirá.
Nenhum dos projetos recebe financiamento formal. O “E agora, José?” recebe, eventualmente, doações a partir de transações penais. “As pessoas que cometem crimes de menor potencial ofensivo, em que a gente faz a transação penal, que é uma forma alternativa de solução de conflito, é possível que a gente faça uma certa forma de composição em que eles são obrigados a pagar determinada contribuição. Em vez de dar uma cesta básica para uma instituição, contribuem para essa associação”, explicou a juíza.