Obras inacabadas ampliam risco e acumulam acidentes em vias de Campo Grande
As intervenções no meio das avenidas, iniciadas na gestão Marquinhos Trad e não concluídas pela atual administração, seguem causando mortes
7 DEZ 2025 • POR Sarah Chaves • 08h15As obras de instalação de terminais de embarque e desembarque construídas no canteiro central de algumas das principais vias de Campo Grande, iniciadas na gestão de Marquinhos Trad, tornaram-se hoje um dos pontos mais críticos da malha urbana. Parte delas foi finalizada, parte segue abandonada há anos e, mesmo nos trechos concluídos, motoristas continuam expostos a riscos provocados pelo desenho geométrico, pela ausência de comunicação visual eficiente e por conflitos entre faixas exclusivas de ônibus e o tráfego comum.
Em contato com o deputado estadual, Pedro Pedrossian Neto (PSD), ex-secretário de obras na época em que foram iniciados os corredores de ônibus, mas em 2022, quando deixou a Secretaria de Finanças, o saldo em caixa da Prefeitura era de R$ 1.018.705.327,66 bilhão, conforme os demonstrativos oficiais daquele período.
O corredor da Avenida Gunter Hans recebeu parte dos recursos do PAC Mobilidade, que destinou R$ 110 milhões a Campo Grande para corredores e recapeamento. As obras começaram em março de 2021, mas estão paradas desde o início de 2024. Outro financiamento, de R$ 93,1 milhões do Avançar Cidades, que completaria o projeto, foi perdido pela gestão municipal. Em março deste ano foi retomada a intervenção no Trevo Imbirussu, ao longo da avenida Gunter Hans com previsão de quatro estações de ônibus construídas ao longo da avenida no valor de R$ 9.638.000,00. A obra teve início no final de março deste ano e tem prazo de 12 meses para a conclusão, mas os trabalhos foram parados devido a atrasos nos pagamentos das empreiteiras.
Na gestão atual, comandada pela prefeita Adriane Lopes, espaços como a Avenida Gunter Hans permanecem sem solução e acumulam um histórico de acidentes que escancaram a falta de segurança.
O caso mais grave é justamente, onde os trechos do corredor de concreto que deveriam abrigar terminais e pontos de embarque se transformaram, na prática, em barreiras rígidas expostas no meio da avenida. Em cerca de dez quadras, a via apresenta estreitamento repentino, ausência de faixas de transição, sinalização deficiente e obstáculos de concreto sem aviso prévio adequado. O resultado aparece nas estatísticas e, principalmente, nas narrativas de quem testemunhou as colisões.
Na noite de sábado (29/11), um passageiro de um Peugeot morreu após o veículo colidir violentamente contra a mureta que divide a pista no sentido Centro/bairro, na altura do Aero Rancho. O motorista sobreviveu, mas em estado gravíssimo, após ser estabilizado na própria viatura do Corpo de Bombeiros. A obra, segundo moradores, não tem previsão de conclusão e é alvo de reclamações recorrentes desde a administração anterior, situação que se prolonga até hoje sem avanço prático.
Apenas dois dias depois, na segunda-feira (1º), um Volkswagen Fox ficou completamente destruído após bater na mesma estrutura, no mesmo sentido da via. A condutora não se feriu, mas entrou em estado de choque ao ver o impacto que o obstáculo causou ao automóvel. A cena, divulgada por moradores, mostra como a barreira permanece exposta, sem distanciamento mínimo ou aviso antecipado que permita reação do motorista.
O JD1 Notícias esteve na Avenida Gunter Hans nos últimos dias e ouviu moradores e comerciantes que convivem diariamente com o risco criado pela obra paralisada. Um dos proprietários de um estabelecimento próximo ao trecho mais crítico relatou a rotina de abandono. Ele preferiu não se identificar por medo de represálias, mas reforçou que a intervenção se arrasta há anos sem qualquer solução efetiva. “A obra, como eu mencionei na gestão anterior, eles vêm, mexem durante 20 dias e ficam um ano sem mexer. Aí volta tudo de novo. Mas não dá jeito.” O comerciante afirma que já presenciou diversas colisões e que o fluxo intenso, somado à ausência de aviso prévio e à falta de iluminação, torna o trecho especialmente perigoso durante a noite. Foi ele, inclusive, quem lembrou à reportagem o acidente fatal ocorrido em 2024, registrado pelas câmeras de segurança da região e que se tornou símbolo da insegurança da via.
Naquele caso, o motociclista Luiz Carlos, de 41 anos, morreu após desviar de um carro e bater no meio-fio elevado do canteiro central, caindo sobre a pista molhada e sendo atropelado por outro veículo que vinha atrás. O vídeo de segurança mostrou a moto trafegando na faixa esquerda e, segundos depois, o impacto repentino contra o obstáculo. Moradores relatam que o trecho onde Luiz Carlos perdeu a vida permanece praticamente igual ao que estava naquela época.
Esses episódios mostram que a obra, há anos paralisada, se tornou um dispositivo permanente de risco. E os acidentes não se restringem a danos materiais, o estudante Daniel Moreti Nogueira, que sobreviveu a uma colisão na última semana no Peugeot, segue internado em estado gravíssimo. A família mobilizou uma campanha de doação de sangue, reforçando a gravidade da situação e o impacto humano da falta de solução definitiva.
Diante desse cenário, o JD1 conversou com a engenheira civil e pesquisadora de mobilidade urbana Rocheli Carnaval Cavalcanti, que analisou o trecho, foi categórica ao afirmar que a sinalização atual não atende às diretrizes exigidas pelo próprio sistema normativo nacional. A especialista destacou a falta de aviso antecipado, a insuficiente distância entre as placas e o obstáculo e a ausência de barreiras que aumentem a percepção do motorista. Em suas palavras. “A mureta que protege o início da obra não estava adequadamente sinalizada. A sinalização temporária deve ser implantada antes do início da intervenção, com posicionamento visível aos motoristas com antecedência suficiente para que ajustem velocidade, faixa ou rota antes do ponto da obra. Há uma sequência ideal recomendada e ela simplesmente não foi aplicada no local”.
A engenheira reforça ainda que, segundo o Manual Brasileiro de Sinalização, vias urbanas até 50 km/h geralmente exigem placas posicionadas de 70 a 100 metros antes do ponto de intervenção, além de coneamento contínuo, aviso de estreitamento e elementos refletivos. A ausência desses componentes expõe motoristas a decisões abruptas e a mudanças bruscas de trajetória, um cenário que favorece colisões traseiras, laterais e até atropelamentos.
Essas falhas não podem ser dissociadas do estado de paralisação da obra, que impede a instalação dos elementos definitivos de proteção, iluminação e acessibilidade previstos no projeto original. Em vez disso, o que se vê é um corredor de concreto interrompido, com pontos de abertura, desníveis e extremidades expostas sem o devido isolamento.
Rui Barbosa também registra conflitos
A Rua Rui Barbosa é um exemplo de que nem mesmo os trechos concluídos são isentos de problemas. O corredor de embarque implantado na via central funcionou em seus primeiros meses como modelo de requalificação urbana, mas rapidamente se tornou um ponto recorrente de acidentes provocados pela dinâmica das faixas exclusivas de ônibus.
Ao tentar converter para acessar ruas laterais, muitos motoristas acabam entrando indevidamente na faixa exclusiva. Nessas situações, ocorrem dois tipos frequentes de colisão, o veículo de passeio invade a faixa no momento da conversão e é atingido pelo ônibus que trafega regularmente no corredor; ou o motorista já em velocidade compatível utilizar a faixa exclusiva de ônibus e não respeitar a conversão de outros veículos.
O engenheiro Valter Almeida, conselheiro do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Mato Grosso do Sul (CREA-MS), alerta que a pior condição para qualquer obra é justamente quando ela está inacabada, pois ela deixa expostos elementos que deveriam garantir proteção ao usuário. Ele observa que o estreitamento brusco e a alteração do fluxo normal afetam a operação do tráfego, a percepção do condutor e a previsibilidade dos movimentos, criando riscos que não existiriam em um sistema finalizado. Em sua avaliação. “A sinalização atual já se mostrou ineficiente para prevenir acidentes. O correto seria implementar um plano de proteção temporária, com faixas de transição, proteções absorventes de impacto e isolamento total das áreas de obra. Essa situação deveria ser apurada pelo município e pelos órgãos de fiscalização, pois só uma análise completa do projeto e da execução pode orientar providências cabíveis”.
Valter acrescenta que soluções provisórias de baixo custo poderiam reduzir significativamente o risco, como revisão imediata da sinalização, aumento da distância de aviso, reforço na iluminação e fiscalização permanente até que as obras sejam concluídas. Para ele, não se trata apenas de identificar falhas pontuais, mas de reconhecer que o conjunto das intervenções deixou a população em situação de vulnerabilidade.
A soma dos episódios na Gunter Hans e na Rui Barbosa expõe um padrão de obras mal planejadas, interrompidas ou executadas sem acompanhamento contínuo que se transformam em obstáculos permanentes na vida urbana. Motoristas enfrentam estreitamentos inesperados, faixas exclusivas sem orientação clara e barreiras rígidas que não deveriam estar acessíveis dessa forma. Pedestres, motociclistas e ciclistas circulam em ambientes que não atendem às regras básicas de segurança viária.