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Opinião

A pedra debaixo do tapete

04 julho 2016 - 11h00Fábio Marchi

Em um outro texto que escrevi sobre o tráfico de drogas na minha cidade natal - Corumbá - eu relato sobre a conivência que a população têm, ao se relacionar com os traficantes da região.

E surpreendentemente hoje eu vejo que a situação em Corumbá piorou, ao longo dos anos.

Ao soltar uma matéria nesta semana falando sobre um representante comercial da capital que foi localizado em um reduto de dependentes químicos - em um local conhecido como “Buracão da 13 de Junho” (e que beira o limite da definição do que seja uma favela) debaixo de uma ponte urbana e no meio de entulho e lixo, muitas pessoas ficaram indignadas porque utilizei a palavra “cracolândia” para definir o espaço, que durante à noite é frequentado por cerca de até 40 dependentes químicos, ao mesmo tempo.

Nesse local, cujos moradores da região tem medo de frequentar à noite - cerceando o sagrado direito constitucional de ir e vir - acontecem pequenos furtos e assaltos de transeuntes e torna a vida de quem vive por ali, um inferno.

Mais abaixo, em outro local do bairro conhecido como Cervejaria, também existe um concentrado de “bocas de fumo” que faz com que a movimentação nessa área durante à noite seja muito parecida - guardada as devidas proporções - com a famosa “Cracolândia” paulistana que inspirou o título da matéria.

O crack, uma da invenções químicas mais demoníacas que o homem já criou é uma droga formada pela mistura de pasta-base de cocaína com bicarbonato de sódio e água. Quando isso é aquecido à 100ºC, acontece um processo simples de decantação, onde a parte líquida é separada da sólida: a parte sólida que resfria e seca é a pedra de crack. Para render e aumentar os lucros, os traficantes acrescentam querosene, cal, cimento, ácido sulfúrico, acetona, amônia ou soda cáustica - e deixam a droga mais potente mortal.

Não precisa ser um químico experiente como o personagem Walter White da série televisiva “Breaking Bad”, para fazer crack. Ninguém precisa de um laboratório caro ou sofisticado para produzir uma das drogas mais potentes, viciantes e destrutivas da história da Humanidade.

Viciar? Basta você fumar uma só vez, e você já estará viciado. Crack causa dependência instantânea, é o sonho de todo traficante.

E infelizmente a minha cidade - o lugar onde nasci, onde cresci, fiz faculdade, casei e tive meus filhos - ainda fecha os olhos para esta triste realidade, tudo em nome de um orgulho besta que mais traz prejuízos, que benefícios.

“Onde já se viu? Corumbá não tem nada disso não!”- dizem uns.

“Querem denegrir o nome da nossa cidade!”- dizem outros.

“Aooooonde! Em Corumbá não tem crack não! Isso tem nos grandes centros! - dizem os mais ignorantes.

Mas a realidade está bem aí, circulando pelas calçadas e se oferecendo para “guardar” carros em troca de algumas moedas ou simplesmente pedindo dinheiro, para ajudar a sustentar o vício.

Sim, moedas. É muito mais barato você ser viciado em crack, do que em cigarro. Enquanto uma carteira de cigarros custa cerca de R$ 7,50, uma “paradinha” (uma pedrinha de crack) custa cerca de dois reais. Com duas moedinhas, dá para “viajar” por cinco a dez minutos - o tempo médio de duração do efeito da droga (e uma das causas do seu efeito viciante assustador).

E assusta mesmo: está sendo cada vez mais comum o uso de crack em trabalhadores e estudantes, sejam eles da área urbana ou rural. E não tarda muito para perceber que alguém viciou-se em crack: o comportamento fica agressivo, a pessoa torna-se desleixada, os dentes apodrecem, as olheiras ficam profundas, os olhos vermelhos e o corpo definha, torna-se esquelético. Pele e unhas ressecam, ficam quebradiças. Imunda, sem absoluto amor-próprio pela vida e 100% dependente química, a pessoa usuária de crack não tem uma vida muito longa: em poucos anos morrem em decorrência de problemas cerebrais e cardíacos ou nos rins e fígado.

Os danos provocados no mente de um dependente químico em crack são irreversíveis: a cada tragada de pedra consumida, milhares de neurônios morrem e o cérebro vira literalmente um queijo suíço. Lembranças e conexões afetivas são perdidas, o raciocínio lógico é afetado. Não é raro um dependente de crack não se lembrar quem é, da sua história ou ainda mais triste, das pessoas que ama. Literalmente, uma vida jogada no lixo.

E mais triste ainda é saber que a minha cidade, tal como a mãe de um filho feio - não admite que tem um filho feio.

Triste e ao mesmo tempo assustador, porque a cidade - que é localizada à apenas 7km da fronteira boliviana (sendo que a Bolívia é a segunda maior produtora de cocaína do mundo), possui centenas de boca-de-fumo espalhadas pela cidade (com o conhecimento policial) com drogas a preços muito mais acessíveis que nas grandes metrópoles (uma pedra de crack que é vendida em na capital Campo Grande a cinco reais, custa apenas dois reais em Corumbá: 150% mais barata, por estar próxima da fonte - a logística explica) e até hoje a Administração Pública da região não possui uma política pública eficiente no combate às drogas.

Tudo por conta desse mesmo orgulho inútil, dessa mania interiorana hipócrita de jogar a sujeira da cidade para debaixo do tapete da conveniência social.

Eu me lembro que nos anos 90 do século passado - quando eu nem sonhava em ser jornalista - havia um jornalista em Corumbá que provocou um imenso questionamento sobre a política das drogas na região. 

Armando de Amorim Anache era o cara que lutava por uma Corumbá livre das drogas, como apresentador de um programa de rádio nos tempos áureos da Rádio Clube. Carismático e repleto de extrema credibilidade, Armandinho (como é conhecido na região) abraçou a causa e partiu para cima dos traficantes, com o apoio da logística policial.

Seu programa ficou conhecido em todo o Brasil. Corumbá aparecia no Globo Repórter, em matérias especiais no Jornal Nacional e até mesmo na CNN e outros canais de comunicação nacionais e internacionais. Observadores vinham conhecê-lo para trocar experiências de combate e prevenção. Até mesmo o DEA - o Departamento de Combate às Drogas Americano tinha um bom relacionamento com ele, pois ele ajudava a destruir o tráfico dentro de território boliviano - e onde o DEA atuava.

Na época, o PCC engatinhava apenas em São Paulo (hoje depois de São Paulo, os estados com maiores integrantes dessa quadrilha são o Paraná e o Mato Grosso do Sul, por conta da rota do tráfico oriundo da Bolívia e do Paraguai) e facções antigas como a Falange Vermelha agonizavam.

Armandinho denunciava traficantes com ajuda de uma rede de informantes (os "papagaios faladores") e com o suporte policial, desbaratinava o tráfico local. Por assumir essa bronca, Armandinho andava armado e com coletes a prova de balas, e profissionais de segurança particular armados com armas semi-automáticas faziam sua segurança 24 horas por dia, pois ele havia sido jurado de morte inúmeras vezes. 

Popular, ele chegou a se tornar vereador de Corumbá com um recorde histórico de votos (e ironicamente nessa mesma eleição,  elegeram um conhecido traficante também - mas isso é outra história).

Porém Armandinho começou a incomodar os poderosos, especialmente os políticos que se beneficiavam do dinheiro do tráfico. Começaram então a arquitetar um plano para desacreditá-lo - ele precisava calar-se.

E adivinhem como conseguiram?

Simples. Começaram a espalhar que Armandinho estava “denegrindo o nome de Corumbá para o resto do mundo”. A imprensa local corrupta começou a espalhar que os turistas não estavam mais vindo para Corumbá com medo dos traficantes (como se o Rio de Janeiro perdesse o turismo mesmo com balas perdidas e arrastões nas praias, né?) e que Armandinho estava fazendo um desserviço para a cidade.

O irracional “orgulho corumbaense” falou mais alto. A população começou a questionar sua luta e a opinião pública mudou. Ele começou a perder popularidade e isso, aliado à outras situações particulares o fizeram terminar de desgostar da cidade - e então ele foi embora.

O tráfico venceu.

Os problemas que Corumbá enfrenta hoje em relação às drogas são infinitamente maiores do que o Armandinho enfrentava naquela época. Mas o “orgulho corumbaense” ainda é a nossa ruína.

É o “orgulho corumbaense” que nos faz cerrar os olhos para os problemas que enfrentamos todos os dias. E é esse orgulho besta que ainda vai acabar matando muitos corumbaenses.

Espero que quando se derem conta do que realmente está acontecendo, não seja tarde demais.

Até lá, vamos vendo casos como o do Flávio acontecendo, dia após dia. O Flávio, uma criança, uma mãe, um vizinho. O coleguinha do filho da escola, o motorista estressado, aquela menina depressiva, o guri entendiado porque não tem nada de bom para fazer na cidade.

Ou talvez não.

Afinal de contas nos acostumamos a fechar os olhos, não é mesmo?

 

Este texto é dedicado ao inegável trabalho de relevância e valor que Armando de Amorim Anache - ou Armandinho Anache - dispensou à nossa região, na árdua luta no combate às drogas,  onde muitas vidas foram salvas ou resgatadas através dos seus alertas e denúncias.  

Que seu bom exemplo e ideais não morram jamais. 

 

(*) Fábio Marchi é jornalista

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