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Entrevista A

“O maior risco de Mayara foi ser mulher”, diz sociológa

28 julho 2017 - 16h20Fernanda Palheta

A morte da musicista Mayara Amaral levantou o debate sobre o feminicídio e a importância de se discutir sobre a violência de gênero. Para a socióloga e pesquisadora da área de violência contra a mulher, Wânia Pasinato, que também que foi consultora da ONU Mulheres Brasil, é importante que se dê um nome para esse tipo de violência, que fica oculta. Ela ainda reforça que no Brasil, por ano são registrados cerca de 60 mil homicídios. Desse total, aproximadamente 10% têm vítimas mulheres. “Precisamos mostrar que a mulher vive em situação de violência, que a violência doméstica familiar não é um problema individual, não afeta apenas uma mulher, mas é um problema social e que, principalmente, não é uma violência que é responsabilidade da mulher”. Confira:

JD1 - Como você vê o fato de o assassinato da musicista Mayara Amaral ser tipificado como latrocínio e não como feminicídio?

Wânia Pasinato - Ao final de 2015 e 2016, trabalhamos aqui no Estado a partir de um decreto criado pelo governador para produzir documentos que vão orientar a investigação, as perícias, o trabalho da PM na proteção do local do crime, o MP, defensoria pública e o Poder Judiciário. A partir disso, o que caracteriza feminicídio é que essa morte ocorreu pelo fato de ela ser mulher. Há aí alguma disputa entre os autores do crime, que são três homens, com relação à vítima, que está relacionada com a desigualdade de gênero da sociedade. É o fato de ela ser uma mulher que levou ao assassinato dela. Isso demonstra feminicídio e é isso que a investigação deveria procurar demonstrar. Se o roubo é um elemento que impõe o contexto deste crime, ele vai ser um elemento a mais, mas nós temos vários outros elementos na forma como esse crime foi cometido, no que antecedeu a morte dessa jovem que precisam ser considerados e que vão nos ajudar a demonstrar que isso foi um feminicídio, como o fato de ela ter uma relação afetiva com um dos acusados, se atual, passada, conflituosa, harmônica... isso a investigação vai apurar ouvindo pessoas de contato dela, como familiares, amigos. Este é um elemento importante porque já coloca um elemento da questão de gênero, a questão da afetividade. Há ainda o fato de ter havido aparentemente uma violência sexual. Isso pode ser apurado se a polícia ouvir atentamente para saber qual era a disposição dela em relação a esse rapaz. Na minha opinião, neste momento, considerando que temos o fato mais grave, que é a perda da vida dela, se o sexo foi consensual ou não é o que menos vai importar aqui. O que importa é que houve uma relação sexual, que pode demonstrar uma situação em que ela estava vulnerável naquela situação. Ela pode até ter sido atraída para essa relação porque tinha afeto e ele usou disso para depois disso assassiná-la. Porque o que eu consegui depreender do que está sendo noticiado é que houve um planejamento e o planejamento não foi para atraí-la para ter uma relação sexual, foi para eliminar a vida dela. Então enquadrar como latrocínio como uma tese inicial da polícia me parece que é neste caso específico em que a vítima é uma mulher e nesse caso em que temos uma lei que permite enquadrar este crime como feminicídio, como uma violência por razão de gênero, ele é um enquadramento tradicional, com um olhar muito tradicional sobre a violência. Eu não sou policial, não tenho o poder de investigar, mas se eu pudesse dizer ao delegado, diria a ele: “por favor, pegue seu caso de latrocínio e coloque em cima uma outra lente e considere o fato desta vítima ser mulher pode levar este caso a uma outra conclusão e que o importante agora não é dizer se foi ou não latrocínio, mas demonstrar  no inquérito policial que neste contexto de violência que existem elementos que podem ajudar o Ministério Público a enquadrar esse crime como feminicídio”. 

JD1 - Há quem diga que tipificar como latrocínio renderia uma pena maior...

Wânia Pasinato - Não temos como controlar qual vai ser a pena aplicada, porque mesmo que seja enquadrado como latrocínio, o juiz pode entender que não e pode também alterar essa pena. Então hoje – e esse é um pensamento de quem trabalha com a violência contra a mulher – nos importa menos saber que vai ser aplicada a pena máxima, mas que vamos conseguir evidenciar que essa morte é uma morte baseada em gênero. O maior risco que a Mayara correu para que esse crime acontecesse é o fato de ela ser mulher. Foi essa a principal vulnerabilidade dela. Não podemos descartar se houve violência sexual, a forma como ela foi atraída ao local, se existiam conflitos anteriores nessa relação de afetividade para poder configurar esse cenário que muito nos indica que foi um feminicídio. 

Jornal de Domingo - Como você avalia a crítica do delegado de que quando o crime envolve mulher já se fala em feminicídio e pode não ser?

Wânia Pasinato - De fato quando se diz que quando uma mulher morreu é feminicídio, há uma preocupação de que, sim, pode ter sido, justamente para que não descarte de antemão esse diferencial de que é uma violência contra a mulher. Nesse documento das diretrizes, trabalhamos justamente essa ideia de que quando você considera desde o início da investigação a possibilidade de ser um feminicídio, você amplia o leque de possibilidades na leitura das evidências, dos vestígios, das provas, que só vão ser bem coletadas se forem coletadas de início. É isso que queremos. Sendo a morte de uma mulher, que se olhe para esse contexto de maneira diferente. 

JD1 - Com relação aos dados de feminicídio, você acha que há casos que são subnotificados, enquadrados em outros tipos de crime?

Wânia Pasinato - Ainda não temos esse dado, nem em Mato Grosso do Sul nem no Brasil, para sabermos quanto o feminicídiio acaba sendo classificado de uma maneira muito tradicional, como homicídio, latrocínio, suicídio ou mortes acidentais, sem investigações para sabermos se tenha uma relação de gênero por trás dessas mortes. Nós sabemos que ainda há uma dificuldade de compreensão de que o feminicídio tem esse diferencial, que o principal fator de risco é a vítima ser uma mulher. Nós precisamos demonstrar isso através da investigação, porque é daí que virão os elementos para podermos sustentar o argumento de que este é um crime diferente, de que o Estado Brasileiro tem responsabilidade por essas mortes também e tem obrigação de investigar essas mortes, demonstrando as razões dessa violência, porque sem isso não avançamos na qualificação do crime, na aplicação da lei, e não conseguimos romper essa lógica tradicional.

JD1 - Sobre a lei, desde que ela foi sancionada, quais foram os avanços?

Wânia Pasinato - O principal ganho da lei do feminicídio é principalmente dar um nome para essa violência que fica oculta. Por ano aproximadamente 10%  do total de homicídios que ocorrem no país, que são em torno de 60 mil, têm vítimas mulheres. Não sabemos como essas mulheres morrem, nem em que circunstâncias elas morrem, mas sabemos que são mortes violentas e que uma parcela significativa dessa violência, cerca 50% são praticadas em condições afetivas, atuais ou desfeitas. Então são mortes praticadas pelos maridos, ex-maridos, companheiros, ex-companheiros... São muitas mortes provocadas pelo fato de o parceiro não concordar ou aceitar o fim da relação afetiva. Ele não mata por amor e o feminicídio vem nos ajudar a impor que não é um crime de amor, de paixão, um ato de desespero de um homem apaixonado que tira a vida de uma companheira porque não vai conseguir sem ela. É um ato de quem se sente confrontado naquilo que acredita ser o seu direito sobre a vida do outro, que tem na mulher um objeto de posse, e não um objeto de amor. O feminicídio vem para evidenciar isso. Essa discussão e essa compreensão que vem sido melhor trabalhada desde a Lei Maria da Penha, que trata de violência doméstica. Precisamos mostrar que a mulher vive em situação de violência, que a violência doméstica familiar não é um problema individual, não afeta apenas uma mulher, não tem a ver apenas com a trajetória particular daquela mulher ou da sua família, mas um problema social, um fenômeno que tem uma dimensão na sociedade brasileira muito maior, e que principalmente, não é uma violência que é responsabilidade da mulher, mas que ocorre porque vivemos numa sociedade que tolera e que nega o direito das mulheres de viverem sem violência, nega o direito das mulheres terem autonomia, terem desejos e viverem da forma como desejam. A lei do feminicídio vem complementar essa discussão porque vem mostrar que a violência doméstica que resulta na morte da mulher não é um crime passional, é uma violação de direitos humanos e que uma outra parcela desses crimes que não ocorrem no âmbito familiar, também são violência baseada no gênero, porque são baseadas pelo ódio, pelo menosprezo, pela discriminação de gênero. O que importa é que essas mulheres morrem pelo fato de serem mulheres. Isso está na nossa cultura, que é extremamente patriarcal e tolera a violência contra a mulher e encontra outras justificativas para essa violência que procuram esconder esse lado de discriminação e menosprezo pela mulher. 


JD1 - Para você, a Lei Maria da Penha e do feminicídio são suficientes para diminuir a violência contra a mulher?

Wânia Pasinato - Nenhuma lei é suficiente em si para diminuir a violência, muito menos uma lei penal. Elas são leis importantes, são um elemento a mais. No caso da Lei Maria da Penha, temos uma lei que estrutura uma política pública, não só para punir o agressor, mas para elaborar políticas de proteção a mulher e prevenção de violência. Na lei do feminicídio, não. Se as leis fossem suficientes para acabar com a violência, não teríamos mais roubos, assaltos, homicídios, tráfico de droga, porque temos um código penal que prevê punição para os crimes. Nós precisamos ter a lei, sim, um instrumento que nos permite captar esse comportamento violento, traduzir dentro de um código legal e levar a uma responsabilização, porque mostra para a sociedade que aquele tipo de comportamento não será mais tolerado. Isso no caso da violência contra a mulher também é fundamental. Mas precisamos do desenvolvimento de outras políticas que ajudem também a fortalecer as mulheres para que não se envolvam em novas situações de violência, que consigam se colocar de outra maneira nas suas relações e, principalmente, para que a sociedade absorva essa informação que essa violência não pode ser tolerada e que possamos trabalhar na educação desde os níveis mais básicos, nas relações familiares para que a igualdade entre homens e mulheres seja de fato o componente das nossas relações sociais. 

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