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Opinião

OPINIÃO: O BOLSONARISMO e o LULISMO

Uma breve história da tragédia política brasileira

14 maio 2024 - 08h23Por Sasha van Lammeren, jornalista, mestre em Comunicação Política e Doutorando em Ciência Política    atualizado em 14/05/2024 às 08h23

Ao longo de sua história, o Brasil viveu diversos ‘ismos’ diferentes. Primeiro, o mais antigo, o colonialismo, processo pelo qual a própria ideia de uma nação chamada ‘Brasil’ se forjou e de onde tiramos as maiores tradições políticas e sociais do país. De seguida, mudamos para o monarquismo. Esta que foi a primeira experiência política do Brasil independente e que nos logrou outras tradições, acumulando-se com as do colonialismo. Tais tradições (políticas, econômicas e sociais) se mantiveram e se exacerbaram no republicanismo, quando abandonamos a ideia de monarquia e adotamos a ideia de República. 

Dentro desta República acidentada, outros tantos ‘ismos’ políticos surgiriam. Primeiro com o positivismo, seguido de tenentismo, comunismo, integralismo, nacionalismo, trabalhismo, desenvolvimentismo, reformismo, getulismo, tucanismo, petismo… Assim como lulismo e bolsonarismo. Mas, afinal, o que significa estes dois movimentos políticos contemporâneos no Brasil? De que forma se diferenciam e se assemelham aos outros ‘ismos’ que já tivemos? São estas questões que procurarei responder a seguir.

Breve história partidária brasileira (do Império a Redemocratização)

Argumento que a polarização política nos é particular desde os primórdios, quando ainda na infância da independência tivemos uma ‘polarização’ entre o Partido Brasileiro (defensor da nossa separação de Portugal) e o Partido Português (defensor da nossa reintegração ao Império Português). Vencida esta dicotomia, logo surgiria outra: entre o Partido Liberal e o Partido Conservador. Esta, que perduraria por toda a Monarquia, representava um sistema partidário nacional, mas de presença provincial. Ou seja, embora estes partidos tivessem envergadura de grandes agremiações políticas de governo imperial, elas eram, na verdade, grandes reuniões de estancieiros e elites que se uniam em torno de algumas pautas divergentes umas das outras.

O Partido Conservador, por exemplo, foi o mais reticente quanto a abolição da escravatura. Já o Partido Liberal foi o promotor da mesma. Tratava-se aqui de uma polarização entre o incipiente ambiente urbano formado pelas capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, etc.), e as elites agrárias, que desde sempre dominavam a economia nacional. Desta dicotomia surgiria uma terceira força (local e provinciana) em 1873, que se tornaria a maior força política do país no republicanismo: o Partido Republicano Paulista (PRP) e, ao seu lado, o Partido Republicano Mineiro (PRM), dividindo o poder por pelo menos 40 anos, até a revolução getulista (em 1930). 

O que quero aqui demonstrar é que as organizações partidárias no Brasil sempre foram mais locais do que nacionais. Sempre rondaram os interesses de grandes grupos políticos, quer fossem agrários ou urbanos. A ideia de partidos nacionais fortes, com presença em todo o nosso território, demorou para se formar. A bem verdade, os principais partidos identitários e ideológicos só surgiriam em 1945, quando finda o Estado Novo getulista e emerge partidos como o PSD, PTB, UDN e o PSP.

O PTB surge do trabalhismo varguista e é liderado por Getúlio Vargas até seu suicídio, em 1954. Após sua morte, duas lideranças emergem no trabalhismo: João Goulart e Leonel Brizola. O PSD surge da máquina estatal do Estado Novo e teve como grande liderança Juscelino Kubitschek (JK). A UDN surge de liberais e conservadores urbanos, tendo como maior liderança Carlos Lacerda (com forte discurso anti-trabalhista, anticomunista e anticorrupção), enquanto o PSP surge das elites paulistas conservadoras, tendo como grande liderança Ademar de Barros. Podemos afirmar que cada estilo político e suas alianças criou os primeiros ‘ismos’ personalistas da República brasileira. Como já vimos, tivemos o getulismo, baseado fundamentalmente na abordagem nacionalista e trabalhista do discurso e governo de Vargas. 

Mas tivemos também o desenvolvimentismo de JK, concepção que até hoje possui influência e que nos logrou em grande medida o Brasil moderno, junto do getulismo. Temos em menor escala, mas igualmente impactante, o lacerdismo (maior opositor do getulismo), oriundo a partir do governo de Carlos Lacerda no então Estado da Guanabara (como ficou por breve período estabelecido o município do Rio de Janeiro, após a mudança da capital para Brasília). Sua orientação direitista e anti-trabalhista e anti-comunista fê-lo grande difusor do pensamento da UDN.

Após o golpe militar de 1964, através do Ato Institucional Número Dois, acabou-se o multipartidarismo brasileiro e no lugar destes partidos foi criado um do governo (ARENA – Aliança Renovadora Nacional) e um de oposição, o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), dando um ‘ar’ de democracia a uma ditadura. Este regime forçosamente ‘bipartidário’ manteve-se de 1965 até 1979, quando o AI2 é desfeito e retorna o multipartidarismo. Logo em 1980, surgem partidos históricos da quinta (e atual) República: o MDB se torna PMDB, surge o PT, ressurge o PTB (num racha entre Brizola e Ivete Vargas, o que acabaria obrigando Brizola a formar o PDT). 

Em 1987 ressurge o PSD, em 1985 surge o Partido Liberal, o PSB surge em 1987 (procurando servir como alternativa ao PDT de Brizola e o PT de Lula), e de uma dissidência do PCB (que existia desde 1922, passando por períodos de clandestinidade) surge o PCdoB (1987). Em 1988 surge o PSDB, como dissidência do PMDB. Vários outros partidos continuariam a emergir a partir dos anos 1980 e nas décadas seguintes, chegando ao número astronômico de 29 partidos em 2024. Esta grande pulverização partidária impede que agremiações identitárias se tornem expressões nacionais legítimas, tornando-se muitas vezes (os pequenos e/ou novos partidos) apenas agremiações locais ou regionais (os famosos ‘cabides’ partidários). 

O que temos de partidos nacionais de fato são alguns institucionalmente organizados a ponto de serem considerados, realmente, partidos de envergadura nacional.

São eles:

  1. 1. PT (único partido brasileiro presente em todos os municípios do país).
  2. 2. MDB (muito perto do PT, o MDB possui grande participação em quase todos os municípios brasileiros e o maior número de filiados).
  3. 3. PSDB (igualmente com grande presença local e regional, além de expressão nacional).
  4. 4. União Brasil (originado da fusão entre DEM e PSL, é hoje tão grande quanto MDB e PT).
  5. 5. Progressistas (com grande número de prefeituras e filiados, é um dos top 5 partidos brasileiros hoje).

Todos os partidos acima possuem mais de 1 milhão de filiados, bancadas parlamentares relevantes, pelo menos 2 governadores e mais de 150 prefeituras (entre elas algumas capitais).

Outros partidos relevantes são: Podemos, PL, PSB, Republicanos, Cidadania e PDT.

O Lulismo: ascensão e queda

Para compreender o atual cenário político brasileiro, temos de fazer uma pequena rememoração do que aconteceu nos últimos anos desde a Redemocratização. A primeira eleição direta pós-regime militar (1989) foi marcada pelo surgimento de algumas lideranças. Entre elas, Luís Inácio Lula da Silva (PT). Numa eleição pulverizada, três candidatos eram favoritos para pleitear a possibilidade do segundo turno: Leonel Brizola, do PDT (que obteve 16,51% dos votos no primeiro turno), Lula (que ficou com 17,19%) e Fernando Collor de Mello, do pequeno PRN (que ficou com 30,48%). Mário Covas (do PSDB) ficou em quarto lugar, com 11,52%, cinco pontos atrás de Brizola.

Destes, a liderança ligada diretamente ao trabalhismo de Vargas e que, de algum modo, trazia para o debate público um ‘ismo’ antigo era Brizola. Rivalizando com ele, num novo trabalhismo sindicalista, estava Lula. Collor, por sua vez, era o desconhecido governador de Alagoas que emergiu como o candidato favorito das elites urbanas e económicas do país. Sua plataforma, em oposição a visão estatista de Lula e Brizola, atraiu a atenção, assim como seu discurso anti-corrupção e sua figura jovial e carismática. Graças a isso, Collor foi eleito no segundo turno (com 53,03% dos votos) em oposição a Lula (que terminou com 46,97%). Embora perdedor, sua grande votação tornaria Lula na maior liderança de esquerda no Brasil. Vale lembrar que Brizola tinha 67 anos de idade em 1989, enquanto Lula tinha 44 anos e Collor tinha 40 anos.

Aqui, temos três padrões que se verificam no período pré-regime militar. Primeiro, temos um movimento trabalhista forte (entre Brizola e Lula, herdeiros do varguismo). Segundo, temos um movimento ‘udenista’ forte, como se Collor fosse sucessor do lacerdismo. O ‘desenvolvimentismo’ de JK ficou diluído, quer entre forças progressistas, quer entre forças conservadoras (oligarcas). Mas na eleição de 1989, as forças que não puderam disputar a eleição de 1965 (devido ao golpe militar), estavam lá, representadas. E este dado é mais relevante para compreender os ‘ismos’ brasileiros do que qualquer outra coisa, pois mostra uma tendência histórica.

Collor, em sua política acidentada, acabou sofrendo impeachment em 1992, sendo substituído pelo seu vice, o inexpressivo Itamar Franco (PMDB). Foi no governo de Franco que o PSDB fortaleceu-se, lançando à presidência em 1994 (na segunda eleição presidencial da Redemocratização), o então ministro da fazenda, Fernando Henrique Cardoso (FHC), que saiu vitorioso no esteio do sucesso do Plano Real. Durante seus anos de mandato, começou a emergir uma certa polarização entre o PSDB e o PT. Lula seria candidato em 1994 e 1998, perdendo em ambas as ocasiões para FHC.

Em 2002, no entanto, Lula consegue finalmente ser eleito, inaugurando assim o lulismo. Vale a pena considerar que os ‘ismos’ personalistas costumam surgir a partir das experiências de governo de determinadas lideranças, fundada por um estilo político e uma pauta (ou agenda) unificada por este. Lula já era um fenómeno antes de ser eleito, e o lulismo incipiente já existia desde as greves do ABC paulista, na década de 1970. Mas ainda não era um movimento político por si, visto que o mesmo vivia na sombra do varguismo e do trabalhismo tradicional brasileiro.

Foi sua eleição que sedimentou o lulismo como movimento próprio. Sendo reeleito em 2006, Lula conseguiu também lançar sua sucessora: Dilma Rousseff (eleita em 2010 e reeleita em 2014). Por todo este período (1994-2014), a política brasileira viveu a polarização PT e PSDB, tendo o PMDB e demais partidos de centro-direita e regionalistas, que orbitavam a polarização. Pode-se afirmar que o auge do lulismo se deu no segundo mandato do presidente (2007-2010), quando sua popularidade chegava aos 85% e o país gozava de grande prosperidade e paz social. Neste período, a própria polarização entre PSDB e PT diminuiu, exigindo que os tucanos repensassem sua estratégia para o pleito que se seguia.

Foi no governo Dilma I (2011-2014), no entanto, que este modelo começou a ruir, dando origem ao atual sistema em que vivemos.

O surgimento do Bolsonarismo na esfera política brasileira

Durante os anos de domínio lulista, empreendida entre 2003 (primeiro ano de seu primeiro mandato) até 2014, quando Dilma é reeleita, o principal partido de oposição (PSDB) precisou mudar sua estratégia várias vezes. Em 2002, José Serra não foi capaz de capitalizar os sucessos do governo que representava (FHC), e perdeu de lavada para Lula. Em 2006, já depois do escândalo do Mensalão (2005), Geraldo Alckmin (então governador de São Paulo pelo PSDB) tentou representar uma mudança. Mas acabou derrotado pelo lulismo, que naquele momento parecia ‘poder tudo’.

Em 2010, o PSDB volta a lançar José Serra como candidato a presidente, enfrentando a estreante e desconhecida Dilma Rousseff (PT). Contudo, a força do lulismo era tão grande que Dilma conseguiu ser eleita, garantindo mais quatro anos do PT no poder. Em 2013, no entanto, estouram as grandes Manifestações dos 20 Centavos pelo país afora, em parte como protesto pelo manejo do dinheiro público em grandes eventos (para a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016), e também como parte de um movimento espontâneo de conscientização política da nova classe média e da tradicional classe média brasileira.

OBS: Aqui é importante esclarecer que a Nova Classe Média (NCM) surge durante os governos Lula, representando uma grande gama da população que havia saído da pobreza e da pobreza extrema e entrado no ciclo consumista. A NCM é representada pelas classes D e E, cuja renda fica entre um a quatro salários mínimos mensais. Uma das maiores características dessa Nova Classe Média é o consumismo e o alto grau de uso das novas tecnologias da informação, incluindo as redes sociais, oriundo da Revolução do iPhone (2007).

Em 2014, o PSDB lança Aécio Neves (o então bem visto governador de Minas Gerais) contra Dilma Rousseff. Munido de um anti-petismo instrumentalizado pelas manifestações de 2013 e pela Lava Jato (grande operação da Polícia Federal que começou a investigar esquemas de corrupção envolvendo empreiteiras brasileiras e o governo federal), Aécio quase conseguiu vencer a máquina eleitoral petista. Mas perdeu por uma margem bem diminuta de votos. Aécio questionou o resultado das urnas, mas depois acabou aceitando a derrota.

Neste período (2012-2018), a Lava Jato foi o maior evento político do país. Tratou-se de praticamente uma placa tectônica em movimento, alterando a estrutura nacional e, consequentemente, político-partidária. O Lulismo enfraqueceu-se, com as crescentes denúncias contra o Partido dos Trabalhadores e a insatisfação popular devida a crise económica do período (2014-2016). O sistema partidário tradicional (originado desde 1979) perdeu a pouca confiança dos eleitores, que depositaram na Lava Jato a grande esperança de uma renovação política. É como se os anseios iniciados nas manifestações dos 20 Centavos em 2013 tivessem sido absorvidas pelo lavajatismo (mais um ‘ismo’ para a nossa coleção).

No meio disso, forças antigas da sociedade brasileira bradavam as suas causas: viúvas do regime militar brasileiro (desacreditados do atual sistema político), outras extirpes de udenistas (ou lacerdistas) anti-corrupção e anti-populismo (que podemos chamar de lavajatistas), assim como evangélicos da Nova Classe Média, eivados de tons messiânicos e de um pensamento conservador urbano e também agrário. Todos eles, munidos pelas novas tecnologias da informação, tornaram-se uma força política. Foram estas franjas sociais que acabaram enxergando em Jair Messias Bolsonaro o representante daquilo que elas ansiavam para o Brasil. É daqui que surge o bolsonarismo.

Compreendendo as semelhanças e diferenças fundamentais entre o Bolsonarismo e o Lulismo

O lulismo, como vimos anteriormente, nasce da tradição trabalhista brasileira, fundada por Getúlio Vargas no Estado Novo. Contudo, ela se desenvolve de forma própria ao adotar uma abordagem mais abrangente e menos política. O trabalhismo tradicional versava sobre as condições de trabalho e sobre a cidadania alargada a partir dela. O lulismo representa uma mutação deste trabalhismo, fundado pelo sindicalismo paulista da década de 1970 e sedimentado na noção de que a cidadania advém de um ‘igualitarismo’ de consumo.

É o lulismo o criador da Nova Classe Média, através dos programas de assistência social (como o Bolsa Família) e dos anos de crescimento e prosperidade económica, fomentado pelo crescimento do setor de serviços entre os anos 2003 e 2010 e também pelo boom das commodities. Enquanto o trabalhismo procurava formar uma nova consciência política, o lulismo (ou novo trabalhismo) fomentava apenas a cidadania econômica, ou o inclusivismo consumista. Lula governou numa ampla aliança entre os trabalhadores e os grandes empresários (representados pelas alianças políticas que o mesmo fazia ao longo de seu mandato), precisamente por conta desta filosofia.

O problema é que ficou de fora o fomento de uma conscientização política efetiva da sociedade, em especial dos mais pobres. O sistema político dominado pelo lulismo não respondeu as demandas por segurança pública, por melhores leitos hospitalares públicos, por melhores condições de escola básica e fundamental, por melhores condições de infraestrutura (saneamento básico, rodovias, ferrovias, hidrovias etc.) além de ter promovido anos de exclusão política em detrimento de um discurso monopolista. Nenhuma crítica ao PT ou oposição democrática era bem recebida, pois era tratada como uma crítica a ‘revolução social lulista’.

Aqui, vale uma importante ressalva. Enquanto temos o lulismo (originado da ação política de Lula), há de se esclarecer que temos também o petismo. O petismo é o modus operandi do Partido dos Trabalhadores em detrimento de sua agenda de poder (do mesmo modo que temos o mdbismo, o tucanismo, o pdtismo e assim por diante). Só que o modus operandi do PT enquanto máquina política é monopolista. Ou seja, ela rejeita qualquer tipo de esfera que possa ameaçar o seu domínio, em especial entre as esquerdas. As principais vítimas do petismo são partidos como PSB, PDT, PCdoB, PSOL (que nasceu de uma dissidência do próprio PT) e outros partidos progressistas. O próprio José Dirceu (estratega petista) já havia dito em muitas ocasiões que o objetivo do PT no longo prazo era o de se tornar um ‘MDB’ da esquerda. Um ‘pega tudo’ unificador das esquerdas. E, neste sentido, tem sido bem-sucedido.

O lulismo é independente do petismo, embora esteja entrelaçado com o mesmo. Da mesma forma que o getulismo é fundador do trabalhismo, mas é também independente do mesmo. O trabalhismo teve outras lideranças, como o já citado Brizola. O petismo, por enquanto, mantém-se centrado na figura do Presidente Luís Inácio Lula da Silva (e do lulismo).

Já no caso do bolsonarismo, o que temos é uma nova direita não necessariamente elitizada. Carlos Lacerda e Fernando Collor de Mello possuíam discursos parecidos: anticorrupção, anticomunismo, anti-populismo, pró-mercado, pró-abertura da economia, anti-estatismo etc. Parte deste discurso, adotado pelas elites paulistas (em especial), como também pelas elites agrárias e urbanas manteve-se no bolsonarismo. Então, neste sentido, Jair Bolsonaro herdou uma direita incipiente que sempre existiu e que estava órfã de representação (depois que o PSDB sucumbiu na Lava Jato e no ideal antissistema).

Mas soma-se a isso a Nova Classe Média brasileira, as classes D e E que tornaram-se parte do processo consumista brasileiro. Foram eles, munidos em especial das novas tecnologias da informação (que eu chamo da Revolução do iPhone de 2007, quando Steve Jobs lançou o primeiro iPhone e abriu as portas para a Internet no celular e, subsequentemente, as redes sociais também), que integraram-se à velha direita. Este fenómeno colocou em evidência um grande grupo de eleitores que, até então, não tinham nenhum poder de influência nos ciclos eleitorais.

Antes da revolução do iPhone e antes da sua inserção no consumo, estas famílias faziam parte da base dos trabalhadores brasileiros, votando de acordo com as preferências locais ou oligárquicas. Nisto, o próprio PT tirou proveito, ao fazer alianças com caciques regionais tradicionais no intuito de manter os votos locais em eleições majoritárias. O desprezo destes trabalhadores pelo sistema político fez com que uma figura anacrónica como Jair Bolsonaro, representante das forças mais reacionárias do Rio de Janeiro na Câmara dos Deputados, ganhasse tração como um indivíduo ‘honesto’, ‘sincero’, ‘nãoalinhado’ com o sistema, defensor da ‘moral e bons costumes’, representante anticorrupção, anticomunismo, o novo ‘caçador de marajás’, sendo os marajás o PT.

A eleição improvável de Bolsonaro em 2018 sedimentou este movimento, que surge disperso (sem liderança unificada), mas que se unifica em 2018 em torno de Bolsonaro contra o petismo. São os lavajatistas (antigos lacerdistas), são os militaristas, são a Nova Classe Média anti-petista que se sentiu enganada pelo PT e que quer continuar participando do ciclo consumista (associando a perda do poder de compra ao PT). São também os evangélicos e cristãos conservadores, que veem no PT um rompimento da moralidade e dos valores que eles buscam respeitar. Todo este conjunto de franjas sociais se tornou o ‘bolsonarismo’. O uso de fake news ou desinformação pelas redes sociais é apenas um paradigma do bolsonarismo, que utiliza as armas da revolução do iPhone contra o ‘sistema’, aqui representado pelo Estado e imprensa tradicional.

Enquanto o lulismo representava uma ‘revolução social’, o bolsonarismo representa uma ‘revolução política’ pela direita. Uma nova direita, essencialmente. E que poucos analistas conseguiram compreender plenamente. Tendo Bolsonaro como figura unificadora, eles agora possuem bandeiras facilmente reconhecíveis: manter-se no tom apocalíptico antissistema, defender uma ‘era de ouro’ do passado que precisa retornar, manter-se em oposição aos esquerdismos (petismo, comunismo, psolismo, socialismo, etc.). Como proposta de país, busca-se um referencial externo. Uma vez que parte do bolsonarismo é a nova classe média consumista e os evangélicos conservadores, o referencial de futuro para o Brasil é o que a classe média consumista e os evangélicos conservadores norte-americanos projetam.

Neste sentido, trata-se de algo essencialmente identitário. A direita brasileira, desde o Império até hoje, possui uma mentalidade parecida. O progressismo brasileiro, por seu lado, também mune-se de elementos similares ao longo da história. É claro que, cada época é diferente e há nuances que não se repetem ou mesmo se transformam. Hoje, a polarização política no Brasil não é mais entre o petismo e o tucanismo, mas entre o lulismo e o bolsonarismo. Só que o lulismo está em declínio. Incapaz de reconquistar a nova classe média, Lula está longe de conseguir emplacar um programa consumista como foi nos anos 2000, e o trabalhismo inclusivista já não possui tração.

Logo, resta ao lulismo mudar o seu foco para identitarismos, o que o aproxima do ‘wokismo’ norte-americano e europeu, com um toque latino-americano. Ou seja, por um lado, trata-se da adoção de uma visão de mundo contrária as grandes metrópoles capitalistas, assim como, numa abordagem progressista nos costumes. A esquerda brasileira, a bem verdade, o trabalhismo (que agora é também disputado pelo trabalhismo desenvolvimentista ou ‘cirista’, criado por Ciro Gomes como sucessor de Brizola no PDT), possui uma agenda muito pobre para a sociedade brasileira no século XXI. E o bolsonarismo também. O modelo político-económico que ambos os lados defendem é ultrapassado e suas novas versões são pouco sofisticadas.

Conclusão e o que podemos esperar do futuro

Se no império a polarização foi entre Partido Brasileiro e Partido Português e depois entre Partido Conservador e Partido Liberal, e se na República começou entre o Partido Republicano Paulista e Mineiro e também demais Partidos Republicanos, até chegar no Estado Novo e surgir o trabalhismo, polarizando-se com o udenismo a partir de 1945. E se no Regime Militar a polarização foi entre governo militar (ARENA) e governo civil (MDB), tornando-se mais tarde uma polarização entre as forças da direita tradicional udenista (Collor, PSDB) contra as forças trabalhistas (Brizola, PT). E se depois se concentrou entre PSDB e PT. Agora, estamos na era ‘lulismo versus bolsonarismo’.

Pode ser que ambos os movimentos ganhem novas nomenclaturas no futuro. Mas enquanto tivermos Lula e Bolsonaro vivos, assim serão conhecidos. Pois do mesmo modo que Getúlio, Brizola, JK e Carlos Lacerda não foram eternos e um dia pereceram, Lula e Jair Bolsonaro também irão perecer. E quando saírem de cena, seus ‘ismos’ terão seus próprios futuros. Hoje, identificar com precisão quais futuros serão estes, é um trabalho ingrato e talvez impossível. Mas, podemos aventar algumas possibilidades.

Creio que o lulismo será absorvido pelo petismo, que o usará como legado e estrutura ideológica identitária entre seus quadros internos. O PT continuará a promover a sua hegemonia pela esquerda, procurando impregnar-se como um forte partido no Legislativo, nos governos estaduais e nas prefeituras. Certamente disputarão a presidência da República outras vezes, e sempre como protagonistas. Não vejo o PT não tendo candidato próprio numa eleição presidencial. No entanto, isso não significa que o lulismo ficará preso ao petismo.

Como dito anteriormente, do mesmo modo que o getulismo é uma força independente do trabalhismo (embora a este ligado), o lulismo se manterá como uma força independente. Seus possíveis herdeiros, na data de hoje, são Guilherme Boulos (atualmente do PSOL) e Marcelo Freixo (do PT). Outra menção importante seria Fernando Haddad (também do PT). A figura histórica de Lula se manterá relevante, tanto pelo simbolismo de sua ascensão social, como também pelo rompimento com o trabalhismo getulista e a criação de um ‘novo’ trabalhismo sindicalista. Ele também será lembrado por ter sido o pai da Nova Classe Média e do Brasil contemporâneo (para o bem ou para o mal).

Já no caso de Bolsonaro e do ‘bolsonarismo’, é importante considerar que não se trata de um movimento surgido num seio partidário. O bolsonarismo rejeita o sistema partidário, utilizando-o como meio e não como fim. Isso não impede, contudo, que partidos e políticos utilizem o bolsonarismo como catalisador eleitoral em oposição a candidatos da ala progressista. Como movimento, o bolsonarismo veio para ficar, pois é uma unificação identitária de uma nova direita que, até então, não possuía liderança, nem voz e nem classificação do que ela era.

Hoje ela existe. E ela está se desenvolvendo por conta própria. Dentro de seu sistema, bastante descentralizado, o Bolsonaro e seu clã político possui grande relevância e liderança. Mas após o Bolsonaro como figura messiânica e personalista, o bolsonarismo certamente terá novas lideranças. E elas já existem neste exato momento. Aponto pelo menos três nomes em ascensão: Nikolas Ferreira (deputado federal pelo PL), Pablo Marçal (empresário filiado ao PROS) e Eduardo Bolsonaro (um dos filhos mais populares de Jair Bolsonaro, filiado também ao PL). Vale considerar que o bolsonarismo está distribuído entre dois principais partidos atualmente: o Partido Liberal e o Republicanos.

Mantendo-se o PT um partido pela esquerda forte o suficiente, é possível que hajam novas unificações ou federações partidárias, colocando no mesmo lado o PT com todas as esquerdas lulistas, e o PL e Republicanos com outros da direita bolsonarista. O PDT de Ciro Gomes, ao não adotar uma abordagem moderna e identitária, tende a perder espaço político e relevância. Partidos ‘pega tudo’ do centro e centro-direita, como União Brasil, MDB, PSD, PSDB e Cidadania, tendem a agir como bloco ‘neutro’ no seio da polarização. A exemplo do que aconteceu em outros momentos históricos, quando as polarizações empurravam o sistema político para frente e os ‘centros’ orbitavam os polos.

Vai depender de como o atual e os próximos governos endereçam a economia, a atual geopolítica, os desafios ambientais, a escalada da crise do INSS, a questão da segurança pública e da alta urbanização das grandes cidades. São estes temas que nos próximos 20-25 anos serão relevantes na vida brasileira. Uma vez que trata-se de uma alta complexidade, não irei me aventurar agora a dizer ao leitor(a) o que espero dos próximos 25 anos. Mas uma coisa é certa: nem o lulismo e nem o bolsonarismo irão embora. Pois havendo um forte elemento anti-petista e anti-lulista no bolsonarismo, conclui-se que enquanto houver PT e Lula, haverá bolsonarismo. E havendo um forte elemento anti-bolsonarista no PT e no lulismo, enquanto houver bolsonarismo, haverá petismo e lulismo. Ambos podem mudar, mas não acabar.

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